Entrevista com Myltainho

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Entrevista com Myltainho


Atualizado 1:05: Eu posso ou não ter deletado isso sem querer ao apagar meus rascunhos, então tô postando de novo. Ainda bem que existe o cache do Google...

Mexendo aqui nos meus arquivos, lembrei que tinha essa entrevista com Mylton Severiano da Silva, o Myltainho (1940-2014). Procurei o site em que a tinha encontrado e descobri que ela não está mais no ar em seu link original e não faço a menor ideia se tem algum cache dela em algum lugar da Internet. Como a entrevista é cheia de histórias interessantes, resolvi compartilhar aqui. Espero que o autor um dia apareça nessa página, se identifique para o universo e deixe a entrevista continuar aqui.

Como, por que, onde e quando você escolheu a profissão? Faria a mesma opção nos dias de hoje?
Publiquei meus primeiros textos em jornais escolares desde os dez anos de idade e, aos 12, um poema de Dia das Mães no jornal da cidade, Correio de Marília, SP. No colégio, fazia o jornal do grêmio, junto com o Woile Guimarães, amigo de infância e hoje também jornalista, dono da GW.
Indo à capital em janeiro de 1960 para estudar Direito, precisava trabalhar para me sustentar. O Woile tinha ido um ano antes e, com ajuda de amigo de Marília, tinha entrado na Folha de S. Paulo, onde me conseguiu vaga de revisor. Três meses depois, me conseguiu vaga de redator na seção de Interior e Estados. Quando entrei na redação pela primeira vez, o destino ficou selado, como se diz. Ou, como dizia Ruy Barbosa, aquilo virou cachaça.
Quando veio o golpe militar em 1964, meu pai, que era do Partidão, foi preso. Paulo Patarra e Mino Carta me convidaram para ir para a Quatro Rodas. A família passando aperto em Marília. Tinha de optar: a editora Abril exigia expediente de nove da manhã às cinco da tarde. A faculdade de Direito do Largo São Francisco, que cursava de manhã, me exigia enorme empenho. Larguei a faculdade no meio do terceiro ano e mergulhei de vez no jornalismo.
Difícil responder se faria tudo igual de novo. A questão básica tem a ver com o que lhe passam os maiores, os pais, mestres. Fui fazer Direito porque gostava de política, do “social”, queria defender trabalhadores, sindicatos – “os mais fracos”, o povo, o Brasil. Optando pelo jornalismo, pensava que ali também cumpriria tal função social. Poderia ter sido músico também, estudei em conservatório por seis anos. Por razões práticas deixei a música em segundo plano. Acho que, atendendo à “questão básica”, a gente acaba sendo útil em qualquer profissão. Mas adoro jornalismo e concordo com García Márquez, que o chama “a melhor profissão do mundo”.

Qual ou quais de suas primeiras matérias ficou/ ficaram na memória – e qual delas o fez sentir que era realmente do ramo?
Por temperamento, formação, sei lá, sempre trabalhei na “cozinha”. Talvez me tenha sentido “do ramo” pela primeira vez na espécie de teste que o Paulo Patarra maquiavelicamente me fez passar, quando me pôs em Quatro Rodas. Eu seria revisor e “preparador” de textos (copy), mas ele então me pôs na frente umas cem laudas, de uma entrevista tirada de gravador com certo coronel aviador, Américo Fontenelle, pára-quedista, sujeito apoplético, ditadorzinho, isto já na ditadura militar recém-proclamada. O coronel havia sido chefe do trânsito no Rio, onde murchava pneus de carros estacionados irregularmente, ou pregava no pára-brisas um cartaz com dizeres moralistas, que o cidadão não conseguia remover facilmente – alguém acabou descobrindo que aquilo saía com cocacola... Agora, o coronel estava em São Paulo para implantar seus “métodos”, concebidos como operação militar, de disciplinar o trânsito paulistano. Bem, transformei as tais cem laudas em umas 40 linhas, cujo título dizia mais ou menos o seguinte: CORONEL CAI DE PÁRA-QUEDAS NO TRÂNSITO DE SÃO PAULO. Não foi publicado, é claro, mas o Paulo mostrou ao Mino e me contrataram direto como redator.

Você começou na Folha de S. Paulo, entre 1960 e 1964. Em 63, passou um período em A Nação. Como situa a posição desses veículos e da imprensa de modo geral no pré-64? Você, pessoalmente, como viveu esse clima?
Jornais em geral, nessa época, ainda viviam o tempo dos jornalistas “românticos”, como costumam defender-se os pragmáticos do momento. Não havia a praga da obrigatoriedade de diploma (isto devia ser opcional) para exercer profissão eminentemente forjada no dia-adia, na prática, na vocação. Quem era “do ramo” logo despontava. Hamilton Almeida Filho, o Haf, amigo do peito precocemente morto, foi “repórter das calças curtas”, aos 15 anos, e ganhou Esso de reportagem com 17 anos, em 1966, com a matéria "Interior, futebol por dentro", no Estadão, com o Tão Gomes Pinto. . Nossa fornada da Folha de S. Paulo nos idos dos 1960 se compunha de Murilo Felisberto, Carlos Brickman, Zé Hamilton Ribeiro, Sérgio de Souza, José Carlos Marão, Woile Guimarães, Maurício de Sousa, Ruy Fernando Barboza, Sérgio e Renato Pompeu, Flávio de Barros Pinto, Fraterno Vieira, Fernando Brisola, Otoniel Santos Pereira, Eduardo Suplicy, Emílio Matsumoto e tantos outros, e é interessante especular sobre como seria hoje uma redação que contivesse tantos talentos.
O grupo Folha, recém-comprado pelo Frias e Caldeira, lança já na ditadura o Notícias Populares, comandado pelo Jean Mellé, figura admirável de jornalista com faro para o popular, logo agregando o Narciso Kalili, outro do mesmo faro. Então, empresários “nacionalistas” lançam A Nação, que na coxia chamávamos de NP de esquerda. Não durou muito. Pressão.
Nas vésperas do golpe de 1º de abril, claro que havia uma efervescência entre nós. Certo Lobatinho, do Estadão, uma noite em que tomávamos uns drinques numa boate perto do Jóquei, vira-se para mim e meus colegas de FSP e diz: Estamos em trincheiras diferentes, e não demora muito para a cobra fumar. Isto foi, creio, menos de um mês antes do golpe. A Folha não participou diretamente do golpe como o Estadão, hoje sabemos que os Mesquitas conspiraram pra valer. Mas logo na semana seguinte teve de começar a abrir as pernas. Na época, pouco antes de ir para Quatro Rodas, eu estava na seção de Política. Recebemos ordens “superiores” de parar de grafar “o golpe de 1º de abril”, tinha de ser “Revolução de 31 de março”. Já começavam atrasando. Torcendo fatos e censurando. Todos sabíamos que o golpe se declarou vitorioso no 1º de abril de 1964.

Como foi a sua entrada em Quatro Rodas? A revista foi mesmo um “ensaio” para Realidade – que viria depois?
Hoje podemos considerar que sim. É só olhar a equipe de QR: além de mim, Sérgio de Souza, Paulo Patarra, Zé Hamilton Ribeiro, Zé Carlos Marão, Luigi Mamprin, Carlos Azevedo, Jorge Butsuem, Lana Novikowa, todos depois em REALIDADE; e os temas, incomuns ainda hoje para uma revista de automóveis, como a reportagem sobre índios que QR publicou.
Entrei para QR por acaso. Estava bem na FSP, como subeditor de Política, quando convidaram meu amigo Otoniel Santos Pereira, poeta, publicitário de truz, para QR, porém ele havia sido convidado para estrear em agência de publicidade, e me indicou. A Abril vinha revolucionando o jornalismo pátrio, profissionalizando. O tal jornalismo “romântico” tinha lances como aquele já tantas vezes relatado, do Chatô recusando dar aumento a um repórter dos Diários, dizendo-lhe: “Você não tem carteira de jornalista? Use-a.” Paulo Patarra me contratou por nada menos que cinco vezes o salário que ganhava na FSP. Dava para comprar um fusquinha zero km por mês. A Abril também, ao contrário de muitas empresas jornalísticas (rádio e tv inclusive), pagava absolutamente em dia, quinzenalmente, e não raro o Rossi, sócio do Victor Civita, vinha pessoalmente de redação em redação com os envelopes com o cheque e os holerites de cada um.

Que matérias você fez em Quatro Rodas? Como é que era a redação? Quem era quem?
Em QR, fiz apenas um roteiro, certa vez, indo de carro de São Paulo ao Uruguai. Ali fiquei pouco mais de um ano, sempre como redator e editor de texto. Mino Carta era diretor de redação, depois vinha um sujeito cujo nome fiz questão de esquecer, só lembro o sobrenome, o Gouveia. Este cara, quando veio o golpe militar, denunciou ao seu Victor a redação de QR como “célula do Partido Comunista”. Seu Victor, o que fez? Demitiu o Gouveia e ficou com os “comunistas”, que ele não era bobo. Depois do Gouveia, vinha o Paulo Patarra, redator-chefe, acho. E os repórteres e redatores, como nós aqui, o Expedito Marazzi, sujeito muito louco, ás do volante, engenheiro, apaixonado por carros e mecânica, fazia os testes. Acabou morrendo ao testar um caminhão, rolando a ribanceira de uma estrada na serra do Mar. Tinha o Carlos Coelho, outro redator, baiano bonachão, também já morreu.
A QR dava-se o luxo de ter repórteres e fotógrafos como os acima nomeados Carlos Azevedo, Zé Carlos Marão, Serjão de Souza, Zé Roberto Pena, Luigi Mamprin, Jorge Butsuem, Armando Rosário, Walter Firmo.

Depois de uma revista, Quatro Rodas, você voltou ao jornalismo diário, no Estadão e no Jornal da Tarde. O que houve de mais interessante nestas duas experiências?
No Estadão, em 1965, simultaneamente com QR, fui redator e copy de um caderno dominical de esportes, junto com Otoniel, Rolf Kuntz, Miguel Jorge, Guilherme Cunha Pinto, Luciano Ornellas, estavam lá o Murilo, o Brickman, era – num paralelo com a passagem QR-REALIDADE – uma espécie de treino para o surgimento do Jornal da Tarde no ano seguinte. Não deixa de ser curioso que o Estadão tenha apostado naqueles “lides” rococós e sofisticados para um caderno de esportes. O Rolf Kuntz chegou a abrir matéria sobre jogo de futebol citando São Francisco de Assis.
Saí da QR para o recém-fundado JT, cuja primeira manchete foi de matéria do Hamilton Almeida Filho, o Haf. Já contei o episódio. Analisando umas fotos de vestiário do Santos FC, o arguto Haf notou algo no anular direito de Pelé. Mandou ampliar a foto, pegou uma lupa, descobriu: uma aliança. Pelé noivo? Saiu a campo, descobriu que sim. Só que a noiva tinha irmã gêmea ou quase gêmea de tão parecida, e o fotógrafo que a “campanou” fotografou a irmã da noiva. Tudo bem. Nem o Pelé talvez tenha desconfiado. E a manchete do nº 1 do JT foi, em 4 de janeiro de 1966, “Pelé casa no carnaval”. Ponto para o repórter.

Como é que nasceu o apelido Myltainho?
O padrinho do Myltainho é o Murilo Felisberto. Geralmente me chamavam de Myltinho,dada a estatura – 1m60, tamanho de brasileiro baixinho. Em 1966, chego à redação do JT debaixo de chuva. Tinha cabelos compridos, abaixo dos ombros, encaracolados. Ao me ver, com os cabelos molhados, encolhido pelo frio, Murilo voltou-se para “a canalha do esporte” e disse: “Olha só, parece um pintainho. Aliás, Myltainho.” Nunca mais me chamaram de Myltinho, ficou Myltainho.

REALIDADE nasceu em abril de 1966, com 251.230 exemplares. Seu nome aparece, pela primeira vez, como um dos redatores, no expediente da edição número sete, de outubro de 1966, quando a tiragem já ia a 485.700, quase o dobro. É das melhores edições. A capa era "Arrelia, o palhaço" - matéria de Roberto Freire com fotos de Lew Parrela -, com quatro chamadas: “Revolução na igreja” (matéria de Narciso Kalili, com fotos de Roger Bester), “Como nasce um demagogo” (José Carlos Marão, com fotos de Jorge Butsuem), “A China Vermelha por dentro” (texto de Duarte Pacheco), “O goleiro é um desgraçado” (não assinada) e “Agora, Cláudia Cardinale” (ensaio fotográfico de Howell Conant). Além dessas, trazia Oriana Fallaci escrevendo sobre o mundo de Disney; um ensaio de David Drew Zing sobre o sol (com poesias de Drummond, Cassiano Ricardo e Vinicus de Morais); textos de Alessando Porro sobre a “Ilha do Diabo”, na Guiana Francesa, e a revolta da Hungria; e, de quebra, uma matéria de Luiz Fernando Mercante e Nelson di Rago (fotos), “24 horas na vida de um jornal”, sobre o dia-a-dia do Jornal do Brasil.

Pergunto:
Como é que você entrou em REALIDADE – e o que fazia, exatamente?
Colaborei com a revista desde o número zero como frila, de texto, enquanto trabalhava no JT e aguardava minha vaga garantida em REALIDADE. Em setembro de 1966, fui chamado, casei e passei a trabalhar junto com o Sérgio na edição de texto.

Quais foram os bastidores desta edição número sete?
Bastidores especificamente do número 7 me lembro de pouca coisa. Sei que texto e título de Cláudia Cardinale me couberam para editar. Arrumei o texto e sapequei "A hora e vez de Cláudia", “inspirado” em "A Hora e Vez de Augusto Matraga", do Guimarães Rosa. Serjão me chamou e disse: “Não vamos usar esse negócio de trocadilho com títulos famosos, tente outro caminho”.A moda de trocadilho era uma praga realmente, muito presente na Manchete e ainda hoje espalhada por aí. Deve-se bastante à preguiça mental dos editores. Era um tal de “Uma caneta na mão e uma idéia na cabeça”, “O apanhador no campo de soja” ou quetais. Ainda esses dias, vemos no Estadão texto intitulado "Relato de um certo Hatoum", sobre o escritor Milton Hatoum, autor de "Relato de um certo Oriente"; e, na Veja, matéria sobre disputa entre paleoantropólogos, intitulada "Fogueira das vaidades", em cima do título da novela do Tom Wolfe, mil vezes chupado. Suei frio quando Sérgio me disse aquilo e a muito custo saiu o título “Agora, Cláudia Cardinale”, que dava pro gasto. Dentre dúzias de lições que o Sérgio me passou estava esta: jamais ceder à preguiça, à facilidade.
O diretor de redação era o P. Pat., como até hoje chamamos o Paulo Patarra. A ele cabia segurar as pontas daquele bando de malucos.

Quem escreveu a matéria “O goleiro é um desgraçado”?
Pois não saiu assinada? Não me recordo por quê. Quem colaborava sobre esportes para nós era o Marcos de Castro, hoje se não me engano na Tv Globo, cuidando da boa linguagem da emissora. Depois, faria parte da equipe. Talvez não tenha assinado por ainda estar vinculado ao JB na época.

Como é que a REALIDADE funcionava, no dia-a-dia, e o que tinha de singular?
Acima do Paulo, só “Deus”, ou seja, Victor Civita, representado no dia-a-dia pelo “primeiro filho”, o Roberto. Mas o Roberto era muito moço ainda e não podia conosco, principalmente por causa do inabalável “espírito de corpo” da redação, da excelência de cada um na sua função, e acima de tudo do sucesso que a revista fez logo de cara. A redação ficava no centro velho, na rua João Adolfo, num décimo-quarto andar que dava para a Praça das Bandeiras. No dia em que a revista saía, a gente costumava sair em grupo para a Praça da República e redondezas, de tocaia nas principais bancas, só para ver REALIDADE sendo vendida que nem pãozinho quente, um barato aquilo. Havia números que esgotavam em banca em menos de uma semana.

Como era o relacionamento entre o redator-chefe Paulo Patarra, o editor de texto Sérgio de Souza, os repórteres, os redatores e os fotógrafos?
O P. Pat., sujeito elétrico, de um bom senso afiadíssimo, peitudo apesar do físico esquelético, fazia a ponte entre “nós” e os patrões. Nosso relacionamento era de um companheirismo que beirava o piegas. Havia sessões de psicodrama coletivo nos bares, nas festas da equipe. As reportagens eram pensadas também em função da dupla que se formaria, de repórter-fotógrafo (a). Além do corpo fixo de repórteres e fotógrafos, contratávamos muitos frilas, e, veja bem, pagos ao mesmo preço do que ganhávamos – éramos disparadamente os mais bem pagos jornalistas do País. Muitos colegas de outras redações tiravam férias para fazer frila para REALIDADE e completar o dinheiro do automóvel, do terreno que ia comprar etc.

Como era a relação da redação com o Roberto Civita?
Em geral de muito bom humor, ele não é bobo nem nada, sacava que a gente “trapaceava” e tocava em frente. Trapaceava no bom sentido. Por exemplo, reunião de pauta mensal era cada vez na casa de um de nós. Com direito a Old Eight, salgadinhos, cerveja, refri, sanduíches, tudo por nossa conta. Alguém que se mantivesse sóbrio anotava as idéias. Sobrava pro Woile, pra Octávia Yamashita, a Lana, que não bebiam ou bebiam pouco. Assim, quando chegávamos para a reunião de pauta “oficial”, que se dava na sala do Roberto quando já havíamos mudado para a Avenida Marginal, já estávamos de cartas marcadas e nós cumpríamos nosso papel, enquanto o Roberto cumpria o dele. Com seu sotaque forte de língua inglesa da América, dizia que havia na pauta muitas “verdades negativas”, que precisava de “verdades positivas” também, e gostava muito dos “fazedores”, coisa de americano mesmo, aqueles caras tipo “self-made man”. Que nós, na forma política da “aliança tática”, aceitávamos sem relutância. A fórmula dava certo e a revista vendia cada vez mais. Se não me engano chegou a passar dos 600 mil exemplares em várias edições.

Poderia traçar um perfil de cada membro da equipe: Patarra, Sérgio de Souza, Carlos Azevedo, Micheline Frank, Roberto Freire, Narciso Kalili, Luiz Fernando Mercadante, José Hamilton Ribeiro e outros?
Queres me pegar, hem? Vamos lá. Patarra, além do que já disse, era um comandante que defendia com garra os comandados. Salários, num tempo de inflação ainda não-dominada, subiam quase todo mês. E ele fazia um jogo maquiavélico, de “puxar” para cima não-sei quem, porque aquele outro tinha recebido aumento, exercia papel equivalente, portanto devia ter aumento também, e por aí ia. É um dos subversivos mais fantásticos que conheci. Atirado. Ousado. Um dos meus mestres na “escola da vida”. Sujeito verdadeiro, colega até as raias da demência.
Acho que contei nalgum lugar. O Narciso foi ao Nordeste fazer reportagem sobre uma vila de pescadores miserável. Chega lá, pega a verba de viagem, compra comida pra todo o mundo, distribui dinheiro. Manda pelo malote da Abril da capital daquele Estado, não sei se Salvador, Recife, bilhete mais ou menos nestes termos:
“Paulinho, seu viado, me manda mais dinheiro que estourei a verba com os pescadores. Dá um jeito aí, pau no seu cu”, aquele jeito “delicado” que o Narciso tinha de ser terno com os amigos, e o Paulo rasgou o bilhete, escreveu outro à máquina em nome do Narciso, dizendo que havia alugado um jipe para chegar à vila, o jipe atolou, tiveram de alugar trator para puxar, e tal, imitou a assinatura do Narciso, passou ao Roberto Civita, que autorizou mais verba.
Sérgio de Souza, o Serjão, chamávamos “Capitão”, tal a ascendência que tinha sobre nós. Espécie de eminência parda da equipe. Pessoa rara no mundo. Meu professor de texto, e também de vida. Seco. Claro. Elegante. Direto. Olho no olho.
Carlos Azevedo, o mais preparado politicamente entre nós, creio. Sério, seriíssimo. “Caiu na clandestinidade” primeiro que todos, quando a ditadura mostrou mesmo as garras. Admiro-o também por isso, além da clareza e beleza com que escreve. A abertura da reportagem que fez certa vez para a revista Doçura, dirigida pelo Narciso, descrevendo como um marido assassino de Minas chega em casa certa noite, prepara uma macarronada, Azevedo dá a receita, o assassino degustando aquilo com vinho francês, era um gourmant, em seguida pegando o revólver e descarregando nas costas da mulher que dormia no quarto ao lado do de casal, já que estavam separados, este início de reportagem do Azevedo é ponto alto do jornalismo pátrio. A revista era distribuída em supermercados Pão de Açúcar. Claro que em Belzonte, terra do magnata assassino, dizem que amigo da família Diniz, a revista não circulou.
Micheline Frank era a “chapa” número 1, ou seja, primeira funcionária registrada na Abril. Fiquei sabendo tempos depois que, após a morte do seu Victor, a demitiram. Sacanagem. Francesa, mulher delicadíssima, educadíssima, bonita, incapaz de uma grossura, foi como que uma gênese do Dedoc, o departamento de documentação da Editora Abril.
Roberto Freire era outra espécie de eminência parda. Médico e psicanalista, escritor, superbem humorado, belo contador de anedotas. Como não era jornalista, embora houvesse sido, acho, co-fundador de Brasil Urgente, jornal de esquerda prontamente “falido” com a ditadura, Bigode, como o chamamos, nos encantou pela verve, pelo conhecimento psicanalítico, que estávamos longe de dominar. Exerceu forte influência sobre a equipe na área do comportamento.
Narciso Kalili foi um dos meus repórteres preferidos. Voltava “da rua” e escrevia como metralhadora na Lettera 22, disparando sua matéria sem se preocupar com vírgula, ponto, parágrafo, acento, era pedra pura a lapidar e transformar em diamante. Depois, tornou-se para mim um dos mais completos editores – faro, tirocínio, pauta que só ele enxergava de tão óbvia, diagramava, bolava ilustração, uma usina de criação ambulante. Na REALIDADE, era o repórter que mais nos fazia “sofrer”, aos editores de texto. Escrevia nunca menos que sessenta laudas. Tínhamos concluído que nossa boa reportagem ficava em torno de 18 laudas (uma lauda: 20 linhas de 70 toques). Acima disso, só material especial, ou ensaio assinado, texto inédito de autor etc. Mas o Narciso queria porque queria, primeiro ser sempre capa; e, segundo, brigava com unhas e tridentes para que não se cortasse nada. Eram brigas homéricas, amigáveis, mas por vezes beirando a rispidez. Era um repórter tutanudo.
Luiz Fernando Mercadante, o diplomata. Amigo do Carlos Lacerda. Assim como os patrões se gabavam de ter “seus comunistas” na redação, nós nos gabávamos de tê-lo entre nós. Texto sedutor, como ele próprio. Fazia perfis de milicos e outras autoridades para “compor” a pauta.
José Hamilton Ribeiro, repórter de veia sui-generis, “caipira”. O ponto alto de sua carreira em REALIDADE e, talvez, em sua vida profissional se deu no Vietnã, ao perder a perna pisando em mina vietcong. E pensar que torcíamos pelo vietcong contra os americanos...
Zé Carlos Marão era um perfeccionista do texto. Estávamos longe da chegada do computador e cada um tinha sua Lettera 22, que os repórteres até levavam para casa. Marão tabulava a máquina em 70 toques e escrevia exatamente 20 linhas em cada lauda. Se errasse uma palavra na última linha, arrancava o papel da máquina, copiava tudo de novo e só entregava suas matérias limpinhas, já mais ou menos no tamanho padrão, por volta das 18 laudas.

Em que aspectos REALIDADE inovou o jornalismo brasileiro?
Escritura, em primeiro lugar. Nada de pieguice, nem adjetivos, nada de marronismo. Fotógrafos com status de repórteres, e escolhidos dentre os melhores à disposição. Fotos “casadas” com o texto, não estavam ali apenas para se dizer que havia fotos. A fórmula, única e jamais repetida, quase cem por cento criada pelo P. Pat., jogava nas bancas em geral 12 “coisas”, em sua maioria reportagens, mais um ensaio fotográfico, uma peça de humor, o conto-reportagem criado pelo João Antônio, era o Brasil e o mundo vistos por olhos de alguns dos mais atentos e talentosos jornalistas daquela geração, posso dizer hoje com o feed-back dos próprios colegas. REALIDADE inspirou-se no new journalism, mas fez jornalismo brasileiro até aqui raramente repetido em larga escala (numa só publicação). Em segundo lugar, a diagramação do Eduardo Barreto, com fotos hipervalorizadas, bem abertas, texto bem mostrado, sem firulas. Terceiro, pauta “quente”. Inovação no tratamento dos assuntos. No comportamento, a revista foi imbatível, ao discutir temas tabus: virgindade, mãe solteira, casamento de padre, divórcio, sexo antes e fora do casamento.

Quais os melhores momentos que a revista viveu? E os piores?
Melhores: todos os números que iam às bancas. Piores: os que sucederam ao anúncio da empresa, naquela tarde de outubro de 1968, de que o Paulo Patarra seria “promovido” a editor “especial” ou coisa parecida, ou seja, estaria a partir dali desligado da revista. Em seu lugar, assumiria alguém por quem não tínhamos lá muito respeito, seja como profissional, seja como gente, o Alessandro Porro. Naquela mesma tarde, num bar da Galeria Metrópole, ao lado da Biblioteca Mário de Andrade, catorze de nós anunciamos nosso desligamento da revista.

O que era fazer REALIDADE em plena ditadura?
Até o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, a ditadura tentava manter um mínimo de fachada liberal. Tivemos uns poucos problemas. Uma foto de parturiente dando à luz causou proibição do número especial dedicado à mulher. Um juiz apreendeu, não me lembro onde, o número “Juventude diante do sexo”, causas que depois ganhamos. E, por incrível que pareça, o fato mais escandaloso ocorreu não por conta da ditadura, mas de estudantes de Teresina, que se sentiram insultados com a reportagem “O Piauí existe”, do Azevedo creio, reportagem que de forma até bem humorada, como mostra o título, procurava retratar o Estado esquecido, na época mais ainda. Pois bem, os estudantes “apreenderam” REALIDADE, fizeram um monte na praça pública e atearam fogo.

Seu primeiro texto assinado, em REALIDADE, está justamente na edição que foi apreendida, com uma matéria especial sobre a mulher brasileira. Chama-se “A indiscutível, nunca proclamada (e terrível) superioridade da mulher”. Qual é a história dessa edição histórica?
Fico com uma historinha apenas. A foto da parturiente – acho que o título da reportagem (do Narciso) era "Nasceu!" – era disparadamente a melhor para abrir a matéria. Debatemos durante dias. Acabou vencendo nossa autocensura. A foto da mulher em posição ginecológica e o bebê apontando (hoje feijão com arroz, até a tv mostra um parto hoje) acabou saindo pequena, no meio da reportagem. Mesmo assim, criou-nos problemas.

Qual é a sua versão para a história do fechamento da revista?
A equipe se autodissolveu quase toda em outubro de 1968. Só dois meses depois, quando baixou o AI-5, a ficha caiu: o desmonte da equipe já era prenúncio de nuvens negras. Não temos até hoje a versão da Abril, mas acredito que deve ter havido pressão da ditadura para “maneirar”. Tanto que, depois de nossa saída, a revista foi ficando cada vez mais morna e morreu poucos anos depois, bem “nanica”.

Como situa especificamente o trabalho de Narciso Kalil em REALIDADE?
Já fiz a comparação: o Narciso tinha o dom de enxergar o outro lado da Lua. Pauteiro irretocável. Via o que ninguém via. Nem sempre o tal do óbvio nelsonrodrigueano. O ângulo inesperado. Brilhante, impaciente, rolo compressor. Incrível que não nos bicávamos no início, por meu jeito encafuado, tímido, ao contrário daquela personalidade extrovertida que ele era. Ele convidava à subversão, também, como o P. Pat., não meramente política, mas estética, comportamental. Quando a ditadura passou a ser contestada nas ruas, passeata dos 100 mil, escaramuças com estudantes, Narciso caiu fora de REALIDADE, meses antes que a equipe inicial se desfizesse. Foi fazer jornalismo diário na Última Hora, já dos Frias mas ainda combativa.
Narciso era o editor-chefe, creio, mas ia às ruas cobrir as passeatas e protestos e acabava se juntando aos “subversivos”, gritando slogans contra a ditadura e acolhendo perseguidos (coisa que vários de nós fizemos, inclusive eu, sob risco até de morte). Serginho Kalili, filho dele, ouviu recentemente de algum colega, acho que o Bourdoukan, a historinha. Diz que, naqueles dias conturbados, houve uma greve de gráficos, ou coisa assim, e o Narciso se solidarizou, liderou a redação de UH na paralisação. O velho Frias foi demovê-lo na redação e, diante da firmeza do Narciso, disse: “Narciso, você é mesmo um Dom Quixote. Eu só não o demito porque você é muito simpático.”

Realidade consolidou a amizade entre você, Narciso Kalili, Sérgio de Souza, Paulo Patarra, Hamilton Almeida Filho e outros. Qual é a história e o significado deste grupo para o jornalismo brasileiro? Como viveu as mortes de Kalili e Hamilton?
Essas amizades, amores na verdade, forjados numa vivência limítrofe entre lucidez e loucura, sobretudo em época de permanente risco de vida no exercício da profissão, impregnam a gente de tal forma que por vezes parece que aquilo foi noutra vida. Ultimamente, e só ultimamente, de uns cinco ou oito anos para cá, fui tomando ciência da importância daquilo que fazíamos como se respirássemos. Estudantes e colegas mais novos passam a chamar para entrevistas. Os mais velhos, da mesma geração ou pouco mais novos, dão o feed back de que nosso trabalho foi importante. Acabamos acreditando. O P. Pat. me disse: “Myltainho, nós viramos grife.” Até livro de doutorado sobre a revista vi outro dia, e me convidaram para criticá-lo. Achei engraçado que o autor, auto-intitulado “Professor Doutor” em Jornalismo, e cujo nome me escapa no momento, esse autor dissecou a coleção da revista e não se deu ao trabalho de entrevistar um, unzinho que fosse, da equipe, e todos estamos vivos, salvo dois ou três que se foram, e precocemente. A amizade ficou, entre nós, forte. Cada vez que me encontro com algum, é como se o tempo não tivesse passado. A amizade foi forte, para mim, com todos, sem falar que entre eles havia um amigo de infância, o Woile Guimarães, mas destaco mais pontos em comum então descobertos com João Antônio, Serjão, Narciso, P. Pat. e Hamilton Almeida Filho – o Haf, outra das maiores vocações para repórter que conheci. Três deles se foram: Narciso, do coração; Haf, de aids; e João Antônio, do coração provavelmente, já que, a categoria sabe, o corpo só foi encontrado três semanas depois da morte, solitária, em seu apartamento de Copacabana. Perdas. É o que sinto. Falta que fazem.

Depois de Realidade, você fundaram uma cooperativa que lançaria jornais alternativos históricos – entre eles Bondinho e ex-. Qual é história dessas duas publicações? E por que elas fecharam?
O trio fundador da cooperativa foi: Sérgio de Souza, Narciso Kalili e Eduardo Barreto. Bondinho era revista de culinária e serviços, distribuída nos supermercados Pão de Açúcar. Acho que o Narciso conseguiu o acordo por relações amistosas com o Bresser Pereira, na época alto funcionário do Pão de Açúcar. A empresa garantia um anúncio e ajudava a carrear outros anunciantes, com o que tocamos um ano. Na hora de renovar o contrato, fizemos assembléia geral. O grupo todo somava uns oitenta, de 17 anos pra cima. Participaram da assembléia umas quarenta pessoas. Já tínhamos outras publicações, como a Revista de Fotografia, em associação com a Fotóptica. Mas a ala jovem, não necessariamente na idade, queria tirar o Bondinho do Pão de Açúcar e botar nas bancas, com outra receita. Fui voto vencido nesse dia. Estava entre aqueles que julgavam mais prudente “acumular forças” e, só então, arriscarmo-nos ir às bancas. Tudo bem. Nos curvamos à decisão da maioria.
Serjão, num sábado de manhã ensolarado, em reunião de petit comité, nomeia surpreendentemente o Haf como editor-chefe do novo Bondinho; e eu, editor de texto; mais o Polé, Paulo Orlando Lafer de Jesus, editor de arte. Polé havia sido assistente do Edu na arte da REALIDADE. Haf tinha acabado de voltar de viagem aos Steites, onde conheceu revistas como Rolling Stones, Rampart’s e outras, da então chamada “contracultura”. Sob sua batuta, e com o fogo no rabo incendiado pelo Serjão, mandamos às bancas o novo Bondinho. Aos 31 anos, eu era o mais velho dos três – Haf e Polé deviam estar com 25 anos. Tínhamos cabelos compridos até os ombros, usávamos macacões, barba ou barbicha – o modelito da contestação da época, da “contracultura”. Me lembro que, quando nos viu juntos, minha mãe olhou bem para nós e disse, dando uma gargalhada: “Meu filho, vocês estão a fim de avacalhar com tudo, não?” Foi a grande definição para o que fazíamos. Em um ano, ou pouco mais, veio a falência, por falta de anunciantes. Ficou a “experiência”.
O ex-, jornal mensal, vem em seguida. Serjão, Narciso e Edu Barreto, os fundadores, aos poucos se retiraram para outros rumos e os mais novos passamos a tocar, Haf, eu, com ajuda nos últimos números do Narciso, P. Pat., Palmério Dória, os fotógrafos Elvira Alegre e Amâncio Chiodi, mais um monte de “ex-editores”, como dizíamos. Passávamos dias e dias a sanduíche de mortadela com guaraná, no almoço, e macarronada com o vinho "Sangue de Boi", à noite. Andávamos a pé ou de ônibus e o telefone da redação era o orelhão da esquina. Comprávamos um monte de fichas e cada repórter recebia sua cota, para os telefonemas. Decididamente, as grandes redações não queriam mais saber daquela turma, ferreteada com o estigma de criadores de caso, porra-loucas, “drogados”, comunistas, adeptos do “amor livre” e tudo o mais que “não prestasse”. Em sua última fase, no segundo semestre de 1975, com uma injeção de dinheiro do P. Pat., de sua indenização ao ser demitido da Abril, o ex- desandou a crescer. De 7 ou 8 mil exemplares, pulou para 30 mil e, com a morte do Vlado, tirou 50 mil exemplares em duas edições. Vendeu praticamente tudo. O cacife aumentou. Achávamos que íamos nos tornar a grande publicação alternativa do País quando a ditadura acabasse.

ex- publicou uma matéria de Hamilton Almeida Filho, sobre o assassinato de Vladimir Herzog, “A sangue quente”, e teve a redação invadida dias depois. Como viveram este momento? E que alternativas sobraram?
Na verdade, “A sangue quente” foi uma “carona” que tomei do sucesso de vendas de “A sangue frio”, do Truman Capote, sobre famoso crime nos Steites, uns bandidos que mataram uma família para roubar, crime reconstituído com minúcias pelo jornalistaescritor. Com “A sangue quente” batizei a reportagem chefiada pelo Haf, quando ele a publicou em livro, pela editora Ômega. No ex-, a reportagem se chamou simplesmente “A morte de Vlado”. Qualquer conotação que irritasse a “linha dura” podia levar-nos em cana ou ao túmulo. Colegas do sindicato vieram até a redação no dia do fechamento, pedir que não publicássemos nada. Foi patético. Nós, implacáveis, decididos a publicar, e os colegas jurando que estavam tentando nos proteger ao pedir que não publicássemos.
Com o dinheiro amealhado devido ao sucesso do ex-16 (décimo-sexto e último número da publicação), rodamos 50 mil exemplares de um número chamado Extra – O melhor do ex-, idéia do Narciso: uma coletânea das melhores coisas que havíamos publicado em três anos de vida. Era, nós acreditávamos, o golpe de mestre para a independência financeira, pagar salários, firmarmo-nos nas bancas etc. Mas, e jamais poderemos comprovar, a Distribuidora Abril pisou no tomate. Devia ser sexta-feira. Achávamos que naquele dia ou no máximo sábado estaria tudo distribuído. Mas não distribuíram, não sabemos a razão. Eis que dois latagões irrompem na redação. Ficava numa casa da Rua Santo Antônio, no Bixiga. Entrava quem quisesse. Eram da Polícia Federal. O Extra estava apreendido por ordem do Ministério da Justiça. Foram apreender toda a edição nos depósitos da distribuidora. Em seguida, veio a ordem de censura prévia contra nós. Nos faliram.
Tentamos sair com novo produto, Mais Um, com um carimbinho que dizia algo como “Qualidade ex-”, mas fomos chamados à PF por certo coronel Barreto, que nos ameaçou diretamente: “Ou param com isso, ou não respondo mais pela integridade física de vocês.” Acabou-se o que era doce.

Repórter 3 e Extra – Realidade Brasileira foram duas boas tentativas de revistas de reportagem. Qual é a história de cada uma – e porque fecharam?
Repórter 3, da Editora Três, que editamos em 1978, durou um número em nossas mãos, mais um lançado à nossa revelia pelo dono da editora, o Domingos Alzugaray, e morreu, também de morte matada. Consta que a pressão partiu do general Golbery em pessoa. Também, pudera, a capa do número 1 era matéria do Narciso, que montou um júri com estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, “julgou e condenou”, pelo assassinato do bandido Nego Sete, o delegado Fleury, do Esquadrão da Morte e torturador de presos políticos e comuns. Capa do Elifas Andreato. Minha contribuição, além de atuar como editor de texto, foi uma HQ “política”, continuação de experiência que já havíamos tocado no ex-, o Jayme Leão e eu. E o número 2, que abandonamos pela metade quando soubemos que já havia interferência e censura em cima de nós, teria como capa “O melhor futebol do mundo na terra dos campos de concentração”, sobre a copa de 1978, na Argentina, mergulhada na talvez mais feroz das ditaduras implantadas mundo afora naqueles anos.
Um episódio foi determinante no fim sumário da Repórter 3. Envolveu o Jota, ou Jotinha, chargista que havíamos trazido conosco para São Paulo depois que acabou a experiência do diário Panorama em Londrina (ali, em 1975, nossa equipe, capitaneada pelo Narciso Kalili, foi despachada com um mês de jornal em banca, mais ou menos, quando nosso repórter descobriu e nós denunciamos em manchete que indústrias fortes da cidade estavam poluindo o lago Igapó, que servia ao lazer dos londrinenses...). Na Repórter 3, o Jota produziu uma charge sobre a anunciada Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, promovida pela ditadura militar para terminar o processo de "retirada estratégica" dos militares, apelidado de "distensão gradual e lenta" – ou seja, nem tão depressa que pareça fuga, nem tão devagar que pareça provocação. O Jota não teria mais que 18 anos. Sua charge mostrava um torturador com restos sangrentos de um corpo de prisioneiro, dizendo ao chefe militar mais ou menos o seguinte: Não vai dar para ser ampla, geral e irrestrita, porque só sobrou isto. Alzugaray em pessoa pediu para "manerar". Foi com muito sofrimento que nós, mais velhos, "convencemos" o Jota a fazer outra charge, na base de sacrificar um anel para não perder o dedo. Acabamos sem anel e sem dedo. Hoje o Jota edita uma bela página de humor na Folha de Londrina, para onde acabou voltando, desgostoso, depois de tentativas outras por São Paulo.
Extra – Realidade Brasileira foi criação do Haf, com minha colaboração, mais Narciso, João Antônio, Elifas Andreato, entre outros. Era editado por Moisés Baumstein, judeu louco, pois só podia ser louco aceitar nos editar naquela altura, 1977. Número 1, "O Ópio do Povo", era sobre a Rede Globo. Depois, vieram os documentos da Igreja sobre a ditadura; "Malditos Escritores", com contos de vários escritores, coordenação do João Antônio; e "Matar ou Morrer", sobre um garoto egresso da Febem, que cinco anos mais tarde mataria a mulher e se suicidaria. Veja a sacação do Narciso, a premonição: como capa, ele pôs o rosto do jovem, Edmilson se chamava, e desenhou-lhe na testa um furo de bala com sangue escorrendo... No quarto número, o dos documentos da Igreja, nós anunciamos o número 5: a relação completa dos “cassados” pela ditadura militar. Não deu outra, chegou em horas a ordem de censura prévia para nós. Fechamos a publicação – lançando manifesto, que ninguém publicou, claro, dizendo que jamais nos submeteríamos à censura prévia.

Entre 73 e 74, você teve uma primeira experiência com a televisão, no telejornal “Hora da Notícia”, da TV Cultura. Depois trabalhou na TV Bandeirantes e na TV Globo, onde foi editor do Jornal Nacional (79) e editor chefe do Esporte Espetacular e do Globo Esporte (83/84). Fez ainda a TV Abril, com o Narciso, no programa dominical "Olho Mágico". Quais foram os momentos marcantes dessa experiência na televisão?
Em 73, convidado por Fernando Pacheco Jordão, o Woile tinha outros planos e me indicou como editor do "Hora da Notícia" na Tv Cultura de São Paulo. Jordão foi meu professor de tv, que jamais eu havia feito, e praticamente me passou todos os pulos-do gato. Eu era um dos editores. Ainda não havia videoteipe, reportagem se fazia com filme, rolinhos de três ou cinco minutos, não havia essa orgia de poder gastar fita de uma hora para trazer reportagem de um minuto, como hoje.
Jordão era o editor-chefe, mas veja a lista de colegas de trabalho: Vladimir Herzog, o Vlado, fazendo internacional; Georges Bourdoukan e Narciso Kalili, chefes de reportagem; repórteres: entre outros, Léa Maciel, Ingo Ostrowski, Ana Maria Cavalcanti, Rose Nogueira e o hoje cineasta João Batista de Andrade. Havia um quadro de avisos enorme na redação, no qual se destacava um monte de laudas coladas uma atrás da outra, formando uma tira que aumentava a cada dia: eram as proibições de assuntos que a censura nos passava, por telefone.
Uma tarde, a tragédia. Incêndio no edifício Joelma. Gente pulando, morrendo queimada, nossa equipe lá cobrindo. Estávamos editando na moviola, a equipe de editores em peso, quando entra um monte de policiais federais. Me lembro bem de um, mocinho, tipo boyzinho, bem vestido e escovado, de terno e gravata, achando-se o próprio agente do FBI, o mais afoito a cortar “cenas de impacto”.
No "Olho Mágico", espécie de “Fantástico de esquerda”, como apelidavam, Jânio Quadros processou o Narciso, que era o diretor de redação (eu, editor-chefe). Jânio era candidato a prefeito de São Paulo. A famosa eleição de 1985, primeira depois da ditadura, em que seu adversário principal, FHC, posou na cadeira antes de abertas as urnas. Vencedor, Jânio borrifou a cadeira com spray desinfetante antes de assumir o cargo. Durante a campanha, nós pusemos no ar uma cena em que Jânio, depois de visitar correligionários na Vila Maria, seu maior reduto eleitoral, desce as escadas de um sobrado completamente bêbado, tropeçando nas pernas e amparado por aspones. Como música de fundo, pusemos “Marvada Pinga” com Inesita Barroso. Jânio processou Narciso; alegou que sofria de “labirintite”, por isso estava trôpego naquele dia. Perdeu.

Doçura, revista distribuída nos supermercados Pão de Açúcar, entre 80 e 81, novamente reuniria você e o Kalili. Como é que foi essa experiência?
Durou um ano ou pouco mais. Kalili se valeu de novo da amizade com Bresser Pereira para emplacar Doçura, tal como o Bondinho revista distribuída nos supermercados Pão de Açúcar. A receita era toda do Narciso. Ele me chamou como editor de texto e especialmente para criar o estilo da seção de materinhas curtas de serviços em geral, tais como plantar jardinzinho ou horta na sala, como tirar mancha, como largar de fumar etc., incluindo colaboradores como o Aloysio Biondi escrevendo sobre economia, claro, mas economia doméstica, um barato. A revista fazia baita sucesso, até que vieram os maridos assassinos de Minas. Acontece que, em poucos meses, vinte anos atrás, houve uma série de assassinatos de mineiras por maridos enciumados. A matéria que mencionei, do Azevedo, nos indispôs com o Pão de Açúcar, que distribuía a revista gratuitamente aos clientes, e os Diniz nos dispensaram. Dizia-se que o assassino era amigo da família.

Em 1984, Marília Andrade pilotou a experiência da revista Brasil Extra – com uma equipe eclética e uma certa expectativa de que daria certo. Só durou um número. Por que?
Pois é. Os irmãos Andrade, Flávio e Marília, filhos de um dos donos da Andrade Gutierrez, se diziam trotskistas. A convite de amigo comum, Bernardo Kucinsky, fui ser o redator-chefe de Brasil Extra. Foi uma luta convencer os patrões de esquerda a fazer uma revista sem ranço, jornalística. Sugeri que tirassem no mínimo 100 mil exemplares de cara. Acreditava no nosso taco. Tiraram apenas 52 mil. Vendeu 48 mil! E os Andrade fecharam. Narciso me relatou. Numa reunião, acho que algum coquetel, Narciso encontrou-se com o Roberto Civita. A Abril tinha distribuído a revista. Roberto lhe disse: “Puxa vida, Narciso, eu não entendo vocês. Uma revista que tira 52 mil e vende 48 mil, e vocês fecham!” Ainda por cima ficamos com a fama redobrada de porras-loucas. A mim, na tarde em que os irmãos Andrade anunciaram o fechamento da revista, Flávio disse: “Só existem 17 mil verdadeiros esquerdistas no País. Portanto, se vendeu 48 mil, é porque a revista é de direita, por isso fechamos.”

Como define a experiência da revista Caros Amigos – e por que a sua coluna semanal se chama “Enfermaria”?
Caros Amigos é a retomada, a continuação de tudo quanto os “ex-“ que nós somos sempre fizemos, jornalismo. Imprensa magra, pobre, com o que podemos fazer. Não por acaso tem pouco anúncio, e nenhum da imprensa gorda. Seria interessante reler o editorial do Serjão no primeiro ou num dos primeiros números da Caros, anotando que, em países ditos civilizados, publicações contestadoras recebem, sim, anúncios do establishment, porque são necessárias ao debate. Caros evidencia este paradoxo: todas as publicações brasileiras competem em condições de igualdade, mas algumas têm “mais igualdade” que outras...
Quando Serjão me convidou para fazer a seção na Caros, eu havia enviado uma série de constatações dos absurdos da vida, como você ter à disposição nos restaurantes populares o chamado PF (Prato Feito), com arroz, feijão, carne, legume e salada, e preferir ao mesmo preço ou até mais caro o Mc gorduroso e antinacional. Perguntava, ao final, se você às vezes não tem a impressão de que todos estão loucos e só você normal, ou, ao contrário, só você está louco e todo mundo normal. Também sempre gostei da expressão “isso aí é outra enfermaria”. Daí o nome da seção, que também tem a ver com a constatação: se jornalismo é isso que a mídia gorda vem fazendo, então não sou jornalista, mas enfermo; ou, ao contrário, eu sou jornalista, e eles, enfermos.

Ultimamente você é editor de textos da revista de bordo da TAM, chamada Almanaque Brasil de Cultura Popular, e editada pelo Elifas Andreato. Como é que o projeto nasceu, e a quantas anda?
Particularmente, me sinto feliz e honrado por trabalhar ao mesmo tempo nas duas revistas com maior índice de “brasilidade” do País, mas sofro por ver as dificuldades que enfrentam os editores, dois queridos amigos de longa data como o Elifas e o Serjão. Elifas tem trajetória semelhante à nossa e já estivemos juntos em inúmeras “barcas”. Ele vinha pensando numa publicação como esta e, segundo me contou, o estalo da fórmula “almanaque” se configurou quando lhe levei meu livro "Se Liga – O livro das drogas", que se desenrola como os antigos almanaques, com seçõezinhas tipo “Você sabia”, “Curiosidades”, “Frases” etc. Elifas é respeitadíssimo como pessoa e como um dos maiores artistas do País. Contudo, luta com imensa dificuldade para captar anúncios para o Almanaque Brasil de Cultura Popular. Tudo a ver, não? O nome da publicação e a dificuldade em obter anúncios.

Você já escreveu alguns livros – entre eles o “Se Liga!”, sobre as drogas, e a biografia do Jorge Guinle, “Um século de boa vida”. Vem mais algum por aí – quem sabe uma história de REALIDADE?
Já cobrei o P. Pat. publicamente. Ele tem originais de um livro sobre REALIDADE que nunca me mostrou, nem publica, nem nada. Atualmente, imagino um livro sobre o “golpe de primeiro de abril”. Ainda não se configurou completamente aqui dentro. Mas sairá.

O que vai mal na imprensa brasileira – e o que vai bem?
Vai mal a elitização, principalmente depois que se tornou obrigatório o “diploma” para o exercício da profissão. Imagino que equivale a exigir carteirinha de escritor ou de poeta. Vai mal, também, pelo discurso “único” e o “adesismo”, quando jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados, como bem disse Millôr Fernandes. Na mídia gorda, vão bem aqui e ali alguns trabalhos de reportagem que, quando acontecem, não passam de exceções. Há tantos e tantos anos fora de redações grandes, nem imagino como se dá o dia-a-dia, não sei como se sentem os verdadeiros repórteres, que afinal são os que conduzem, ou devem conduzir a seiva do jornalismo.

A quantas anda o texto jornalístico que você tem lido nos jornais e nas revistas, de maneira geral?
Sempre é perigoso generalizar. Me alegra ver um texto bem escrito, em que o autor ou autora conseguem se fazer entender, transmitir o “recado”. Me aborrece ler gente que quer aparecer mais que o objeto de seus escritos, imitando gracinhas mil vezes repetidas, quando não escrevem propositadamente confuso. Sem contar a enxurrada de “especialistas” ocupando páginas e páginas com textos em geral obscuros. O poeta Ezra Pound diz em seu "ABC da Literatura" que “a linguagem nebulosa dos trapaceiros serve apenas a objetivos temporários”.

Das três revistas semanais – Veja, Istoé e Época, e da quinzenal, Carta Capital, alguma lhe entusiasma especificamente?
Carta Capital e Isto É.

E os jornais diários?
Leio regularmente a Folha, o Estadão e, por estar morando em Florianópolis, os jornais catarinenses. Mas nenhum me entusiasma como me entusiasmava a Última Hora do Samuel Wainer.

Quem fez/faz a sua cabeça. No melhor sentido da expressão?
Quem me fez a cabeça para sempre foi meu pai, autodidata (não chegou a concluir o primeiro ano do antigo primário), meu “tipo inesquecível”.

O que mudou em relação à reportagem, de REALIDADE para cá?
Reportagem “de fôlego” como as de REALIDADE não se tem feito. Você pega um jornal diário ou revista de circulação nacional e encontra o quê? Quase sempre matérias de conveniência. Calhaus para preencher espaços entre anúncios. É um bálsamo quando você depara com uma reportagem de truz. As “denúncias” geralmente servem a “objetivos temporários”, acochambramentos, contramaracutaias.

Como avalia o tratamento da mídia ao governo FHC?
Como disse, a regra é o adesismo, discurso único. Parece que Brasília pauta todo o mundo. Não existe mais furo, esta raridade. Não existe repórter na rua.

O que é que um repórter nunca deve fazer?
Cascatear.

Que livros aconselharia como básicos para quem está entrando na profissão?
O que é básico para mim pode não ser para você. Para mim, foi e tem sido básico ler Machado, Eça, Rosa, Graciliano, história, Gay Talese, García Márquez, João Antônio, Gilberto Freyre, Lima Barreto, João Cabral, Drummond, Bandeira, John Reed, Mário Quintana, Câmara Cascudo...

Qual é a sua lista dos dez melhores filmes sobre jornalismo/jornalistas?
"O Informante", "A Montanha dos Sete Abutres", "Cidadão Kane", "Profissão Repórter (O Passageiro)", "Todos os Homens do Presidente" (sobre Watergate), "Rede de Intrigas", "O Ano que Vivemos em Perigo", "Truman Show", "Gritos do Silêncio" e "Primeira Página".

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