maio 2015

sexta-feira, 29 de maio de 2015

É o século XXI, estúpido!


Nasci nos anos 90. Uma época de planos econômicos, hegemonia neoliberal, suposta estabilidade da moeda e muita instabilidade no mercado de trabalho. A TV aberta não tinha freios morais e exibia closes genitais em bundas e coxas num domingo à tarde. Pra quem queria um conteúdo mais "sofisticado", a TV por assinatura era a grande ostentação - e um dos poucos luxos que eu tive em minha infância. O leite era C, a geladeira era ruim, a própria televisão do quarto tinha 14 polegadas, mas o cabo estava ali.

Não que fosse uma coisa essencial que a gente teve a vida toda -  pelo contrário, vivíamos numa espiral de cancelamentos e renovações -, mas o cabo estava ali, tirando todo o interesse que eu poderia ter em programas de auditório, telejornais na hora da janta, filmes dublados de noite, etc. Era como se a minha casa fosse parte de uma espécie de elite intelectual conectada ao mundo via cabo coaxial. Mesmo numa TV de 14.

Tenho TV a cabo hoje, mas assisto bem menos do que assistia há 20 anos. Ou mesmo 10. Em compensação, me rendi ao tão falado Netflix e estou tentando estabelecer uma espécie de calendário pra organizar tudo aquilo que eu quero assistir. Já faz algum tempo que os fins de semana têm sido dedicados aos jogos eletrônicos e aos vídeos disponíveis na Internet. Nos dias de semana, uma mistura de Twitter, smartphone (agora eu tenho um, voltei à vida digital) e tudo que eu puder consumir de vídeo, música, textos, publicações digitais, etc. Já há algum tempo eu imagino como seria minha casa sem TV paga. Desisto porque ainda tem gente nessa casa que usa. E porque o futebol fica melhor lá.

Nos EUA, as famílias Zero-TV - aquelas que não têm esse aparelho que faz parte das nossas vidas e vivem de vídeo direto no computador, geralmente com um monitor bem grande - já representam mais de 5% da população. Mais de 70% dos americanos ainda têm pelo menos um televisor em casa, mas ele é usado cada vez mais para jogar, navegar na Internet, assistir um filme, qualquer outra coisa que não seja ver um canal de TV. Em 2013, 37% das famílias americanas consumiam vídeo pelo computador, 8% em smartphones e 6% em tablets.

O tempo das pessoas não é infinito: se eu estou fazendo uma coisa, deixo de fazer outras. Antigamente, a mídia tradicional - TV principalmente - monopolizava a atenção das pessoas, fazendo com que elas vissem os closes genitais das tardes de domingo sem reclamar - e até curtindo um pouco aquele espasmo de sexualidade possível. Hoje, a atenção das pessoas está cada vez mais se concentrando em plataformas digitais, incluindo jogos e redes sociais. E se eu estou jogando Angry Birds, eu automaticamente não estou vendo o SBT. Nem a TV a cabo.

O jornalista Leandro Beguoci pediu em um artigo que fizéssemos o seguinte exercício: "olhe ao seu redor. Quantas pessoas estão usando o Whatsapp, o Facebook ou publicando no Instagram ao seu redor?". Faço esse exercício discretamente em qualquer lugar público e toda vez eu reparo que o número de pessoas mexendo em seus celulares é cada vez maior.

Mais computador, celular, tablet. Menos TV, rádio, jornal, revista. A mídia tradicional está disputando com novas mídias a atenção das pessoas. Atenção que um dia ela monopolizou. É nesse contexto que se apresentou o fracasso do retorno da Banheira do Gugu.

Chega a ser curioso ver que, mesmo na Internet, muita gente tenha atribuído o fracasso a coisas pontuais. Matheus Lanieri, por exemplo, escreveu que "faltou um pouco de RedeTV para a atração. Faltou ousadia e o público percebeu isso, fazendo com que durante o grande evento da noite a Record ficasse em terceiro lugar no Ibope". Guilherme Beraldo, meu xará do blog Portal 4, foi em caminho semelhante: "Os domingos da década de 90 eram mais ”apelativos” e o resultado na audiência era no ato. Ontem, o retorno da Banheira do Gugu afundou a Record para um ingrato terceiro lugar". Tudo isso escrito por jornalistas que, mesmo sem saber, disputam a atenção das pessoas com a Record, o Multishow, o FIFA 15 e o Netflix.

Aos fatos: a Banheira foi um dos assuntos mais comentados no Twitter. Primeiro pela expectativa, depois pela decepção. A Record disputou a atenção dessas pessoas e perdeu. Porque foi bizarro, porque falou imaginação e porque a Banheira foi um produto feito para um momento histórico diferente, em que se vivia um outro paradigma -  o do monopólio da atenção. Quem se decepcionou por não conseguir reviver os anos 90 com o quadro não se limitou à passividade de mudar de canal, como se fazia na época em que o quadro dava certo. Foi às redes sociais desabafar - e tirar atenção da TV.

Pode até ser que tenha faltado ousadia, apelação, etc. Mas um quadro bizarro como esse jamais poderia disputar a atenção com as coisas que nós gostamos de fazer. Eu vou assistir a Banheira sendo que eu posso escolher entre rever a superprodução que foi o clipe de "Bad Blood", aproveitar minha assinatura do Netflix, me atualizar em um portal de notícias, assistir algum vídeo do Porta dos Fundos que eu ainda não vi ou fazer uma playlist no Spotify? Qual a possibilidade?

A mídia sempre usou como estratégia ir pra onde a audiência vai, só que hoje a audiência tá indo pra tudo que é lado. Isso dissolve algumas certezas, como a de que o close genital vai fazer a audiência subir. E o impacto que isso traz ao modelo de negócios do audiovisual é terrível - as demissões na Record, emissora em que Gugu apresenta seu programa, deixam isso claro.

Repensar o relacionamento com a audiência, discutir o modelo de negócios baseado majoritariamente na publicidade, produzir um conteúdo de qualidade que seja coerente com esses novos modelos de negócio e de consumo de mídia, construir parcerias com os novos players do audiovisual - incluindo os provedores de conteúdo over the top (OTT), como o Netflix. Tudo isso parece muito mais importante para qualquer empresa de audiovisual - emissora, produtora ou mesmo canal de YouTube - do que descobrir uma apelação que dê muita audiência. Isso fica cada vez mais claro nos EUA, onde as redes abertas buscam cada vez mais a aceitação do mundo digital, mas está longe de entrar na cabeça dos responsáveis pela arcaica mídia brasileira.

Não é a apelação, não é o shortinho, não é a bomba que as "modelos" tomaram que fez o retorno da Banheira do Gugu ser um fiasco. É simplesmente o fato de que nós não estamos mais nos anos 90 e o que funcionava numa época de monopólio da atenção não funciona mais numa época em que a atenção se divide em assistir Masterchef numa tela e comentar no Twitter na outra. É um mundo que mudou e o Gugu não percebeu.

E quando eu quero relembrar os MEUS anos 90, vou ao YouTube ver vídeos como esse: