abril 2015

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Eu quero que o 'bom gosto' se exploda!


Não gosto de funk carioca.

Não gosto pelo mesmo motivo que leva alguém a gostar: sem saber por quê.

A patrulha do "bom gosto", que determinou os estilos musicais que as pessoas "de bem" podem e não podem ouvir, dá um monte de motivos pra não gostar do funk: "só putaria", "é música de bandido", "não é cultura", "não tem profundidade". Nenhum deles é o meu. Até porque, em um passado não muito distante, essa mesma patrulha usava muitos desses argumentos contra o samba.

Há ainda um pedaço dessa patrulha que acha que o funk é uma expressão "americanizada" e que, por isso, deve ser evitada. Não tenho moral pra falar isso gostando de rock e electro-pop.

Não tenho raiva dos fluxos (que a mídia insiste em chamar de "pancadões" só porque soa mais pejorativo), nem acho que quem ouve funk é por definição ignorante e alienado. Já fui mais reacionário nesse ponto em diversos sentidos, mas agora eu tenho estado mais otimista em termos culturais. E não me importo de mandar "beijinho no ombro" pra quem enche o meu saco.

A mesma patrulha do "bom gosto" decretou que Racionais também é "música de bandido", mas eu vejo muito mais profundidade em expressões como "vi um pretinho, seu caderno era um fuzil". É um retrato nu e cru de uma realidade que os Racionais não endossam, mas sabem que existe graças a um círculo vicioso formado por miséria, desigualdade social e abandono.



Até hoje não sei como a patrulha permitiu que ouvíssemos Mamonas Assassinas, enquanto acusa o funk e o sertanejo de "sem profundidade". Não entendo como nos deixa ouvir funk desde que seja James Brown - qual a diferença entre a letra de "Sex Machine" e aquelas feitas pelo MC Dandara?



(Como disse o professor Murilo Cleto, "James Brown é bom demais. Mas o argumento de que é bom porque sua música e sua letra irrompem as barreiras da trivialidade e encontram com o sublime é mais do que desonesto. É imbecil")

Tem também o "pop lixo descartável". Na opinião da patrulha, devo ser um alienado que gosta de ouvir uma parceria do Zedd com a Selena Gomez.



Estou falando tudo isso porque, na Internet, o que não falta é gente pra usar os argumentos que rejeitei acima. O maior exemplo é Rachel Sheherazade, aquela do "marginalzinho com ficha mais suja que pau de galinheiro". "O funk carioca, que fere os meus ouvidos de morte", diz ela, "é descrito como manifestação cultural. Pior é que ele é, pois se cultura é tudo que o povo produz, do luxo ao lixo, funk é tão cultura quanto bossa nova. Sinal dos tempos, né?" Sim, sinal dos tempos que mudaram à revelia de certas pessoas.

Ainda nessa linha, podemos adicionar um certo Nando Moura, que se diz fã de rock. Como todo revoltado midiático, tal qual a própria Sheherazade, Nando dirige sua raiva aos alvos fáceis, como o PT. Não é capaz de ultrapassar em profundidade a TV Revolta, arremedo de página "política" que se popularizou nos meses que antecederam a eleição de 2014. O problema é que uma amiga compartilhou um vídeo dele dizendo que está "amaaaando" seu canal no YouTube.

O vídeo versa sobre a banda de metal do Mr Carta. É algo irrelevante pra mim, até porque não vou ouvir as músicas dele. Não porque ache que ele vai desonrar o rock, mas porque eu não gosto de metal também - a única música que carrego comigo é "No Pain No Gain", que não sei se faz parte do cânone do "metaleiro de verdade". E ainda desconfio que seja só porque o clipe tem imagens da seleção alemã, o que faz com que a música me lembre da atmosfera de uma Copa do Mundo (outra coisa que a patrulha do "bom gosto" acha que é alienação é o futebol, devendo ser consumido de forma desapaixonada. Não foi assim que eu vi a disputa de pênaltis ontem. E de que vale o futebol sem paixão?).

Nando ficou revoltado com a disposição de Catra e cometeu um vídeo em que diz, entre outras, coisas, que Catra é "um pedaço de merda", além de repetir os clichês contra o funk de que falei no começo do texto.

Eu, que não gosto de gente que fale que as coias que eu gosto são "pedaços de merda", fiquei com vontade de tocar o "1989" inteiro em versão metal, só pra deixar ele mais irritado (minha amiga não deve ter entendido, pois curtiu esse comentário).

Não preciso dizer que ele ia me odiar por fazer isso. Ele e todos os revoltados midiáticos acham que qualquer coisa que fuja do que eles gostam é "alienação", "manipulação", "descartável" e "não é cultura" ou é "cultura lixo". Mais uma vez citando Murilo Cleto, esse é "um discurso nada entalado nas gargantas de uma classe (...) que entende tanto de música quanto de cultura ou do mundo acadêmico. Aquela que gosta de sertanejo, mas - grife-se – o de raiz. Aquela que aprecia o funk, mas o James Brown".

É curioso que os que se dizem fãs do rock, um estilo que muito sofreu com o preconceito, sejam os que mais mostrem preconceito com outros estilos. O rock nunca foi um estilo refinado. Chuck Berry não chamava a atenção pela complexidade, mas o espasmo de libertação que só o rock poderia causar. Elvis também não era necessariamente um perito em arte, nem os Beatles com suas melodias simples - e é quase impossível achar alguém que não goste, ou que não tenha sido influenciado por eles. Hendrix distorceu sua guitarra e fez com que sua música fosse um tapa na cara do american way of life. E o que dizer do punk, cujos artistas acreditavam que três acordes bastavam? Ou do próprio metal?

Não é preciso dizer que o rock sofreu muito preconceito. Mas muito preconceito mesmo. Nos anos 50, os mais conservadores ficavam horrorizados com a rebeldia do rock, tanto quanto os supostos roqueiros de hoje ficam com o funk. Quando o rock chegou de vez ao Brasil, nos anos 80, a patrulha que hoje diz que funk "não é cultura" berrava contra o rock nacional dizendo que era alienante.

O estilo só foi plenamente aceito pela patrulha do "bom gosto" nos anos 90, quando começou a sair do mainstream. E ainda assim, vemos hoje uma ferrenha rivalidade entre os defensores do rock de guitarra alta - o de rádio, tipo Charlie Brown - e os defensores do rock de erudição - tipo Autoramas. Um diz que o outro não é "rock de verdade".

Por isso mesmo, é hipócrita que um roqueiro diga que o funk "e só putaria", quando foi o rock que trouxe a sexualidade e o amor livre para a cultura pop. Também é hipócrita falar em "música de bandido" para se referir ao funk, quando bandas de rock cantavam o crime em plena liberdade - "Breaking The Law" é o grande exemplo.

E é hipócrita que roqueiros usem contra o funk argumentos que já foram usados contra o rock - mas também contra o samba, o sertanejo "de raiz" e o James Brown. O fato é que, desde o modernismo dos anos 20, toda revolução cultural tem uma reação a se levantar contra ela. A diferença é que agora a reação está na moda.

Por isso mesmo eu quero que essa patrulha do "bom gosto" se exploda! Ouvir funk não te torna ignorante, ouvir metal também não. O que te torna ignorante é achar que, por ouvir, cantar, compor, produzir e/ou tocar um estilo de música, uma pessoa será inferior a você.

Beijinho no ombro e fique com "Débil Metal", dos Mamonas,